Residências geriátricas querem imunização de reforço em seus pacientes, mas o conhecimento científico acumulado até agora só recomenda isso a pessoas imunodeprimidas.
À medida que a vacinação avançou no mundo de forma lenta, e novas variantes de coronavírus surgem, a humanidade se aventura por um terreno desconhecido: será que as vacinas continuam protegendo com a mesma eficácia? Serão necessárias uma ou duas doses de reforço? São perguntas para as quais ainda não há respostas claras. Numerosos estudos tratam de averiguar como o sistema imunológico reage ao coronavírus e às suas mutações, mas até agora não há evidência que avalize uma terceira injeção para reforçar a proteção. Apenas em pessoas imunodeprimidas – como pacientes oncológicos ou recém-transplantados – ficou demonstrado que essa dose de “lembrança” é conveniente, mas não tanto como reforço, e sim porque suas defesas não respondem de maneira suficiente às duas doses habituais.
Por esta razão, a agência norte-americana de medicamentos (FDA, na sigla em inglês) aprovou na noite desta quinta-feira a administração de uma quinta dose para pessoas com imunodeficiências, algo que a França já fez. Coisa bem diferente é o que vem fazendo Israel, que já está oferecendo esta dose adicional a todos os maiores de 60 anos – e, nesta faixa etária, 60% já a receberam, algo mais de 700.000 pessoas. A França, o Reino Unido e a Alemanha pretendem seguir o mesmo caminho a partir de setembro. Israel inclusive está estudando seguir com a terceira injeção em todos os maiores de 40. “Isto não faz sentido”, opina Roselyn Lemus-Martin, pesquisadora de novos tratamentos e vacinas da Universidade de Oxford, para quem a ciência não avaliza esta terceira injeção, salvo nos casos descritos anteriormente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) fez um apelo aos países ricos para que se abstenham de administrar esta nova dose enquanto pelo menos 10% da população de todos os países do mundo não tiverem recebido a primeira.
Apesar de o Chile ter recomendado a aplicação da terceira dose para os que tomaram a Coronavac, no Brasil, a ideia é rechaçada pelo Governo de São Paulo, espécie de patrono da vacina chinesa no país. O governador João Doria (PSDB) afirmou no início do mês que a terceira dose é uma “inutilidade”. “Isso é uma inutilidade. Não há nenhuma necessidade de você tomar uma terceira dose da Coronavac, bastam as duas doses, que é o que recomenda a Organização Mundial da Saúde”, disse o governador em entrevista ao portal Metrópoles, no início do mês. De fato, não há evidências suficientes e nem um consenso entre os cientistas de que uma terceira dose é realmente necessária. Por isso, o Ministério da Saúde encomendou um estudo para avaliar a efetividade de uma terceira dose da Coronavac. Realizada em parceira com a Universidade de Oxford, a pesquisa deverá ficar pronta em novembro.
A eficácia da vacina é inquestionável, pois ela fez o número de mortos despencar, mas um crescente número de especialistas suspeita que o nível de imunização pode cair entre os idosos, que foram os primeiros a serem vacinados. José Augusto García, presidente da Sociedade Espanhola de Geriatria e Gerontologia, soma-se à reivindicação de estudos que revelem o estado sorológico dos idosos nos asilos. “Não há nenhuma justificativa para que na Espanha, um país desenvolvido, com médicos de primeira linha no mundo da imunologia e vacinologia, ele já não esteja em andamento. Pode ser uma iniciativa do sistema público de saúde, de algum governo regional, de universidades ou inclusive do setor privado, e se as agências de saúde europeias colaborarem, em nível internacional, melhor ainda”, prossegue.
O geriatra explica que os idosos geralmente são muito frágeis e têm doenças crônicas, apresentando uma menor resposta imunológica, o que se conhece como imunossenescência: “O sistema imunológico também envelhece e fica com menos capacidade de resposta a uma agressão externa”. As vacinas não são 100% infalíveis, e a variante delta é mais contagiosa, algo que explica o aumento de casos. García propõe aguardar “estudos científicos sólidos” e as “recomendações da Agência Europeia do Medicamento e da FDA”. Mas insiste em que, se for necessária uma terceira dose, “é preciso começar com as pessoas de maior idade e com maior carga de doença crônica, seja vivendo em asilos ou em seus domicílios, e pelas pessoas com imunodepressão”.
Estudos sobre a imunidade
Já há alguns estudos em andamento. Um deles, realizado pelo Instituto de Pesquisas da Aids IrsiCaixa, com a participação de 98 pessoas, mostrava que os níveis de anticorpos caíam em maiores de 65 anos três meses depois da injeção. Há vários estudos que vão por este mesmo caminho. Entretanto, isto não esclarece se a vacina continua sendo eficaz, explica Marcos López Hoyos, presidente da Sociedade Espanhola de Imunologia: “O que procuramos com a vacina é gerar memória imunológica. Os anticorpos são as balas: se estiverem no sangue, melhor; mas se não estiverem e o sistema imunológico reconhecer o vírus, pode fabricá-las para lutar contra ele”.
Aqui entra em jogo a imunidade celular, que não se pode medir com testes de anticorpos. As células B são capazes de fabricar anticorpos quando detectam a presença de um agente patogênico conhecido, e as T podem eliminá-lo por si mesmos. A combinação de ambas é o que gera uma boa resposta aos intrusos que penetram no corpo humano. E isto é o que ainda não se sabe. “Há várias equipes investigando. Não posso dar os resultados, mas tudo indica que a memória imunológica com estas vacinas é duradoura”, afirma López Hoyos, que reconhece a necessidade de estudar de forma mais detalhadas a situação dos idosos, já que seu sistema imunológico reage pior que o dos mais jovens.
O Grupo Social Lares, entidade que reúne asilos geriátricos sem fins lucrativos na Espanha, mostra-se prudente. Seu presidente, Juan Vela, diz tratar-se de “um assunto de saúde pública”. As outras três grandes entidades setoriais pedem pressa. “Que haja um estudo. E, se for preciso, pedimos uma terceira dose em setembro, que se organize a vacinação dos idosos outra vez, mas que nos digam isso”, reclama Cinta Pascal, presidenta do Círculo Empresarial de Atenção às Pessoas. “O próprio laboratório Pfizer recomendou uma terceira injeção. Pedimos um trato preferencial e que nos deem o quanto antes”, solicita Ignacio Fernández, presidente da Federação Empresarial da Dependência. Jesús Cubero, secretário-geral da Associação de Empresários da Dependência, pede coragem ao Ministério da Saúde e também considera necessário que se comece a programar imediatamente a terceira dose, antes da chegada do outono europeu. “Já tomaram a decisão no Reino Unido, França, Alemanha, Israel – são espelhos que devemos observar”, diz. “É preciso tomar decisões e por uma vez nos anteciparmos aos fatos, que os políticos não esperem que a realidade lhes ultrapasse”, afirma.
O certo é que se trata de uma decisão mais política do que científica, quando ainda não se sabe se será necessária uma terceira dose ou quando. Como resume Federico Martinón, assessor da OMS para vacinas: “O mais urgente é que toda a população vulnerável receba a primeira dose, independentemente de onde estiver. O seguinte mais urgente é que se complete a pauta vacinal na população mais vulnerável, independentemente de onde estiver. E, a partir de então, cogitamos a terceira dose. Algo que já está sendo estudado, em termos de segurança e reação imunológica, já que é um cenário possível, e devemos estar preparados para fazê-lo com todas as garantias. De novo, primeiro nos grupos mais vulneráveis”.
EL PAÍS