Infográficos: Bruno Fonseca
Especial: Coronavírus
Os cidadãos de metade dos países da América Latina não sabem quantos testes para detectar o novo coronavírus são realizados diariamente pelos seus governos. Também não sabem quantos leitos de UTI estão disponíveis. Mesmo que a doença ainda não tenha atingido o número máximo de pacientes que necessitam de cuidados médicos intensivos, esse tipo de dado é crucial para manter a população informada. Mas não está acessível, segundo descobriu uma investigação conjunta de 15 meios de comunicação de 13 países do continente – os Estados Unidos foram incluídos pela sua população latina.
Há apenas dois dados universalmente disponíveis em 11 países da América Latina: o número diário de casos confirmados de Covid-19 e o de óbitos. Nem sequer as estatísticas sobre a quantidade de pessoas recuperadas são públicas em todo o continente. Isso significa que os governos latino-americanos têm adotado a postura de divulgar o mínimo possível de informações sobre a doença.
Por aqui, o governo de Jair Bolsonaro tentou limitar a divulgação de informações públicas com uma Medida Provisória em em 23 de março. A MP permitia às agências federais suspender os prazos da Lei de Acesso à Informação caso seus funcionários estivessem em regime de teletrabalho e sem acesso à documentação física necessária para responder aos pedidos, ou então se estivessem envolvidos em ações de resposta à crise. E se a resposta fosse negada, não haveria possibilidade de recurso. Após pressão da sociedade civil – mais de 80 organizações repudiaram a medida em uma uma carta coletiva – a MP foi temporariamente revogada pelo juiz Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Quantos latino-americanos foram infectados pela Covid-19?
Todos os 13 países atualizam diariamente as suas estatísticas públicas de casos confirmados de Covid-19 e mortes. Entretanto, uma análise do detalhamento sobre os infectados e recuperados mostra que o Brasil está longe de ser o mais transparente.
Os Estados Unidos não publicam o número de pessoas que se recuperaram, um dado crucial para compreender a capacidade e a qualidade da resposta do sistema de saúde ao número de pessoas infectadas. O Brasil só começou a publicar essa informação em 14 de abril.
Qual é a capacidade dos leitos de UTI?
Apenas metade dos países analisados informa publicamente sua capacidade total de leitos de UTI, segundo dados analisados pela reportagem. A informação é crucial, dado o risco real de que, no ápice da curva de infecção, a infraestrutura de tratamento intensivo dos sistemas de saúde não seja suficiente para atender à alta demanda.
Embora nem todas as pessoas hospitalizadas com Covid-19 necessitem de leitos de UTI, essa informação permite analisar a eficácia das medidas adotadas por cada país para aumentar sua capacidade de atendimento médico. O dado é público na Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Paraguai, Peru e Estados Unidos.
Mas isso não significa que o indicador seja de fácil análise. No Peru, por exemplo, o número de leitos de UTI, bem como de ventiladores, não é divulgado em nenhuma plataforma, mas é conhecido porque as autoridades do país, quando questionadas, o citam em entrevistas. No entanto, são dados nacionais; não há como entender sua distribuição por região ou hospitais.
Apenas três países informam aos seus cidadãos a taxa de ocupação dos leitos de UTI, já que muitos deles estão sendo usados por pacientes com outros problemas de saúde. É o caso do Paraguai, Peru e Estados Unidos.
Em outros países, as autoridades já informaram a taxa de ocupação em uma determinada data ou existem dados para regiões ou cidades específicas, mas não um panorama nacional frequentemente atualizado.
Em todos os países são divulgados boletins periódicos pelo governo federal ou autoridades sanitárias com dados atualizados sobre a pandemia. Em vários casos, como no Peru e na Colômbia, o presidente faz pronunciamentos quase diários na televisão ou nas redes sociais. No México, como no Brasil, são as autoridades sanitárias que aparecem diariamente.
Em alguns países, os governos estaduais complementam a divulgação com dados locais. No Peru, foram identificadas discrepâncias entre os sistemas de informação dos diferentes níveis territoriais, com casos confirmados de Covid-19 ou mortes que já haviam sido oficialmente reportadas regionalmente, mas que não surgiram a nível nacional. Temos o mesmo problema no Brasil: levantamento feito com base em dados das secretarias de saúde dos 26 estados e do Distrito Federal pelo site G1 traz resultados diferentes do balanço do Ministério da Saúde.
Em seis países, no entanto, não há informações das autoridades locais, sejam regionais ou municipais: Bolívia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala e Paraguai.
O acesso à informação tem sido limitado?
Assim como a medida tomada por Bolsonaro – depois suspensa pelo STF –. dois governos na América Latina, em El Salvador e no México, tomaram a mais drástica das decisões: suspender os prazos dos pedidos de acesso à informação apresentados com o respaldo de suas Leis de Acesso à Informação. O motivo alegado foi a urgência da resposta do governo à pandemia.
No México, a Plataforma Nacional de Transparência suspendeu os prazos de acesso à informação pública entre 23 de março e 17 de abril, enquanto o INAI, instituto federal que garante o acesso da população à informação, fez o mesmo com as suas sessões públicas.
Pelo menos três outros países alteraram temporariamente as regras para realização de pedidos de acesso à informação pública: Argentina, Colômbia e Peru. Nos dois últimos, o novo prazo para resposta é superior à duração das quarentenas decretadas pelos governos. No Peru, ficou determinado que as solicitações de informação não digitais podem ser afetadas devido à limitação de mobilidade dos funcionários públicos.
Na maioria dos países, os jornalistas consideram que as respostas aos pedidos de informação têm demorado mais tempo que o habitual. Mas nos 13 países, sem exceções, a circulação dos jornalistas é garantida em meio às medidas de distanciamento social impostas à população. No Brasil o trabalho de jornalistas foi considerado como serviço essencial pelo decreto federal publicado em 22 de março.
Honduras, o país mais crítico
Trinta e dois ataques a jornalistas e à imprensa em geral foram feitos por Jair Bolsonaro nos três primeiros meses do ano, o que leva a uma média de um ataque a cada três dias. Esse é o resultado de um levantamento feito pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que divulgou ontem (16) a primeira de uma série de avaliações trimestrais sobre violações da liberdade de imprensa no Brasil em 2020. De acordo com a RSF, as investidas do presidente contra jornalistas, que se sofisticaram e escalaram desde o início do ano, ficaram ainda mais evidentes agora, com a crise em decorrência da Covid-19.
Em tempos de pandemia, a relação de Bolsonaro com a imprensa piorou ainda mais depois que, no fim de março, ele colocou seu filho Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), vereador do Rio de Janeiro, para despachar do Palácio do Planalto. O presidente teria acatado a sugestão dada pelo “zero dois” de ignorar os repórteres na portaria do Palácio da Alvorada.
Embora o Brasil seja apontado internacionalmente como um acaso preocupante em termos de liberdade de imprensa em meio à crise do coronavírus, o caso mais extremo é o de Honduras, onde o presidente Juan Orlando Hernández decretou estado de emergência e suspendeu vários artigos da Constituição, incluindo o que protege o direito à liberdade de expressão.
“Esse tipo de medida é desproporcional e afeta o direito da população de acessar informações completas sobre a Covid-19”, criticou Edison Lanza, relator especial para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH). “Essas medidas não devem ser utilizadas de maneira abusiva para limitar a liberdade de expressão, sobretudo em um momento em que os meios de comunicação desempenham papel fundamental em manter a sociedade informada e segura”, declarou o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ).
Além das Honduras, jornalistas de pelo menos outros oito países citam menor disponibilidade de informação pública.
Em El Salvador, o governo tem limitado o acesso às coletivas de imprensa e não permite perguntas dos meios de comunicação que considera críticos, incluindo o El Faro, um membro da nossa aliança. Embora o presidente Nayib Bukele tenha batido na tecla de que não limitará o direito à liberdade de expressão, na prática é a Assembleia Legislativa que tem conseguido mantê-lo. Por exemplo: na aprovação do estado de emergência, a Assembleia incluiu um artigo afirmando que o governo não pode limitar a liberdade de expressão. Do mesmo modo, quando o presidente criou fundos de emergência através de empréstimos multimilionários e autorizou a suspensão da Lei dos Contratações para permitir compras mais rápidas, o Legislativo adicionou cláusulas que proíbem a não divulgação de informações. Mesmo assim, os gabinetes de informação e resposta que deveriam garantir o respeito à lei de acesso à informação no país não estão funcionando e anunciaram que admitirão pedidos somente após o fim da quarentena. Então, na prática, o governo salvadorenho conseguiu restringir temporariamente o acesso à informação.
Além disso, o governo brasileiro não informa a faixa etária dos casos confirmados. O Ministério da Saúde chegou a divulgar a idade dos pacientes em estado grave, mas agora revela apenas a idade das pessoas que morreram.
A maioria dos países divulga a origem dos casos – se são importados, se estão relacionados a casos importados ou se são fruto de transmissão comunitária –, o que ajuda a compreender a propagação do vírus. Três países – Equador, Brasil e Estados Unidos – não fornecem essa informação.
A maioria dos países concede informações sobre distribuição geográfica dos seus casos (por cidade ou município), outro elemento que também ajuda a compreender a distribuição regional.
No entanto, o Brasil apenas publica dados por estado e a Argentina, por “província”. O Paraguai passou a informar números por cidade apenas a partir de ontem, 16 de abril. Já a Guatemala deixou de divulgar informações sobre seus 22 “departamentos” e 340 municípios, agrupando-as em cinco regiões mais extensas.
Muitos dos países da região comunicam à população sobre o atendimento recebido pelos pacientes de Covid-19: se estão em casa, internados em leitos comuns ou na UTI. Mais uma vez, o Brasil é um pária: como acontece apenas na Guatemala, o governo não divulga essa informação, que poderia ajudar a população a compreender a gravidade do estado de saúde das pessoas infectadas.
Já a Argentina informa somente o número diário de pessoas sob cuidados intensivos.
Quem está realizando testes? Onde? Qual é o critério?
Uma das maiores questões para cidadãos de países em início de pandemia – como todos os países do continente – é medir o nível de testagem da população. Também importa saber o tipo dos exames.
Os testes moleculares PCR, que detectam a presença do vírus no corpo por meio da análise de material coletado da garganta e nariz do paciente – conhecido por “swab” –, são considerados mais confiáveis pelas autoridades e especialistas, mas sua análise leva um tempo maior. Já os testes sorológicos, que buscam no organismo os anticorpos específicos para o coronavírus, são mais rápidos e têm, custos mais baixos. O problema é que esses anticorpos aparecem cerca de 10 dias depois da infecção, o que pode gerar falsos negativos.
Na América Latina, a informação oferecida pelos governos em relação aos testes, um dos fatores técnicos mais urgentes de se identificar, é geralmente limitada. Menos de metade dos governos publica de forma consistente o número de testes realizados por dia. O dado é público na Colômbia, Costa Rica, Peru, México, Argentina, Equador e Bolívia. A Costa Rica só começou a divulgar essa informação em 15 de abril, após pressão da imprensa e de grupos da sociedade civil.
Apenas a Bolívia divulga em quais locais são realizados os exames. Com Paraguai e México, ela também forma um pequeno grupo de países que revelam a quantidade de testes em processamento.
Na Costa Rica, os jornalistas enviam perguntas para um número de Whatsapp antes das coletivas de imprensa diárias do governo, mas muitas vezes as questões nem são lidas ou não recebem respostas claras.
Na Guatemala, o secretário de comunicação do presidente bloqueou durante vários dias a participação dos jornalistas no chat oficial do governo para evitar perguntas sobre a gestão da crise, o que provocou a publicação de um comunicado crítico assinado por 97 comunicadores.
No Equador, o governo de Lenín Moreno criou uma ferramenta para a realização de coletivas de imprensa online por meio da qual os jornalistas enviavam perguntas, mas não ficava claro qual era o critério de seleção e quem as escolhia. Após o lançamento de uma carta pública assinada por diversos jornalistas equatorianos, agora as coletivas são realizadas pelo aplicativo Zoom, com a possibilidade do envio de perguntas.
Com muitos governos escolhendo divulgar dados com o mínimo detalhamento possível, os jornalistas sentem que investigar e fornecer informação de qualidade sobre a resposta à Covid-19 se tornou uma tarefa mais lenta e difícil, o que afeta diretamente o nível de informação a que a população tem acesso.