A retomada da democracia após o fim da ditadura militar, em março de 1985, deu continuidade a um movimento para evitar punição a agentes do Estado acusados de assassinatos, sequestros e torturas no regime.
Documentos obtidos pelo UOL junto ao Arquivo Nacional, a pesquisadores e no acervo da CNV (Comissão Nacional da Verdade) revelam que, logo após a posse de José Sarney, integrantes das Forças Armadas e da Polícia Federal expediram relatórios com monitoramento de vítimas, familiares, partidos e políticos que pediam investigação sobre crimes. O ex-presidente teria atuado para orientar o não ataque e conter o que chamavam de “revanchismo” de ambos os lados.
O UOL leu documentos produzidos entre os anos de 1985 e 1991 que tratam sobre os pedidos de investigação. Muitos dos relatórios tentaram criar e fortalecer movimentos de autoproteção dos militares e desqualificação das vítimas denunciantes. Um dos principais nomes denunciados nesse período de pós-ditadura era o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), recentemente classificado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) como “herói nacional”. Ustra foi apontado por vítimas como um dos principais responsáveis por torturar presos.
Em 15 de agosto de 1985, uma denúncia emblemática veio pela carta da atriz e então deputada federal Bete Mendes. Após visita a Montevidéu, ela encaminhou correspondência a José Sarney em que contou ter sido torturada por Ustra e pedia a exoneração dele do cargo de adido do Uruguai. A preocupação com a repercussão do caso foi expressa em vários documentos. Um relatório confidencial de 4 de setembro 1985, produzido pelo Centro de Informações da Marinha, afirmava que havia no Brasil “uma série de movimentos de denúncias de torturas e outros que buscam localizar os desaparecidos no tempo de luta armada e tentam, ainda, responsabilizar a União pelas mortes”. “O caso do coronel Ustra fez com que o ministro do Exército mandasse expedir nota ao público interno manifestando apoio àquele oficial e a todos que haviam atuado contra a subversão e o terrorismo. Entretanto, o vazamento do documento trouxe nova onda de reações, especialmente de parlamentares, provocando nas lideranças políticas manifestações de apreensão pela intensidade dos ataques”, diz o documento.
Há ainda uma crítica à Arquidiocese de São Paulo, por ter publicado o livro “Brasil: Nunca Mais”, lançado naquele ano por nomes como Dom Paulo Evaristo Arns e Jaime Wright com denúncias de torturas daquela época. Um dos trechos que mais chama a atenção é que, após a denúncia, o então presidente José Sarney, “preocupado com o desdobramento dos fatos, orientou os líderes da Aliança Democrática para que não haja novos pronunciamentos que venham a gerar retaliações. No momento, suas recomendações têm surtido um certo efeito”, afirmam os militares.
Em entrevista, Sarney confirmou conter “revanchismo”
Em entrevista concedida em 2007 à cientista política Glenda Mezarobba, durante sua pesquisa de doutorado na USP (Universidade de São Paulo) sobre como o Estado brasileiro vinha lidando com as graves violações de direitos humanos ocorridas do período, o ex-presidente José Sarney detalhou seu papel na transição para a democracia. “Posso assegurar que a transição idealizada e negociada pelo doutor Tancredo [Neves] –e que, pelo Destino, acabaria sendo levada a cabo por mim– tinha muito cuidado em não permitir qualquer tipo de revanchismo, tanto à esquerda quanto à direita”, relatou o ex-presidente. Apesar de ter sido eleito pelo Congresso, Tancredo não chegou a assumir o cargo. Ele morreu em abril de 1985. Sarney disse: “Sabia que deveria fazer a transição com os militares e não contra eles. Se fizesse ‘compromissos’ mais enfáticos quanto ao tema das vítimas do regime, poderia comprometer todo o processo”. “Para ilustrar esse sentimento, é bom não esquecer que ele temia até mesmo a convocação da Constituinte e a legalização dos partidos clandestinos. Não estava nos planos dele. Como eu não estava amarrado às complexas negociações e aos compromissos que Tancredo teve que fazer com a área militar, ao assumir a Presidência, eu pude legalizar o PCdoB e convocar a Constituinte”….
Críticas à exoneração de torturador…
Antes da denúncia de Bete Mendes contra Ustra, um documento do comando do Exército no Rio de Janeiro, de 16 de maio de 1985, cita o caso denunciado por José Carlos Monteiro, integrante do PCdoB e ligado a “ala Prestes” do partido. Ele acusou o tenente-coronel Valter Jacarandá, então subchefe do Estado-Maior do Corpo de Bombeiros do Rio, de tortura. Por conta disso, ele fora exonerado pelo governador Leonel Brizola –demissão confirmada em seguida pelo órgão de apoio do governo estadual. “O Conselho de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos, após sua reunião do dia 16 de abril, considerou ‘adequada a decisão de exoneração do coronel’ (…) em face de acusações formuladas por pessoas comprometidas com as esquerdas, configura um clima de revanchismo, que poderá se estender por outros setores”, afirma o documento. “Já existe, inclusive, um estado de preocupação e insatisfação entre oficiais da PM do Rio que servem ou serviram em órgãos de segurança, diante da ‘onda’ revanchista que parece se ampliar na área. Vários oficiais do Corpo de Bombeiros estão assinando abaixo-assinado, por meio do qual repudiam a forma como foi exonerado de suas funções o tenente-coronel Jacarandá, e ao mesmo tempo hipotecam solidariedade ao referido oficial”, completa o texto.
Em agosto de 2013, em depoimento às comissões Nacional e Estadual da Verdade, Jacarandá confessou ter participado de sessões de tortura. “Choque elétrico e pau de arara eram práticas que aconteciam”, disse.
Monitoramento de “subversivos”
Em 9 de outubro de 1985, um relatório do Centro de Informação da Aeronáutica faz um resumo de “organizações subversivas de ideologia comunista e outras ideologias extremistas”, com investigação e detalhes de líderes. O documento não cita, entretanto, como foram obtidas as informações. “Pode-se prever, a curto prazo, o surgimento de processos judiciais, campanhas de desmoralização, envolvendo o nome das Forças Armadas, e até a formação de algum movimento do tipo ‘Locas de La Plaza de Mayo'”, diz, em referência pejorativa ao movimento argentino das mães de desaparecidos no país durante a ditadura, chamado de Mães da Praça de Maio.
Em 17 de dezembro de 1985, um documento produzido pelo Centro de Informações da Polícia Federal cita que integrantes da “Comissão de Mortos e Desaparecidos do Araguaia” estão percorrendo a área “procurando coletar dados acerca dos guerrilheiros que habitaram a região nos idos de 1970 a 1975, afirmando serem familiares daqueles terroristas”. “Os militantes dessas organizações pretendem reabilitar o movimento guerrilheiro do ARAGUAIA, enfocando-o como justo e correto, com o objetivo de propagandizar a luta armada como único e eficaz caminho para se obter “a libertação e independência do povo brasileiro”, diz o texto.
Busca por legitimação de atitudes durante a ditadura…
Historiador e ex-assessor da Comissão da Verdade do Rio, Lucas Predetti fez uma série de pesquisas a documentos dessa época para sua tese doutorado na Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Ele investigou os movimentos de vítimas e militares pós-redemocratização e encontrou vários arquivos que apontaram para a preocupação de militares com os movimentos de investigação. “Isso ocorre de imediato. No momento em que começam a surgir as primeiras denúncias de violações de direitos humanos, os militares se organizam e vão começar a construir todo um discurso não só para justificar a atuação durante a ditadura, mas também para desqualificar os familiares e os movimentos sociais …
que se organizam para denunciar as violências do regime”, diz. Ele conta que a atuação dos militares com discurso de vitimização é muito forte. “A gente consegue ver isso não só pela quantidade de documentos produzidos, mas também como eles circulam entre as agências. Eles têm muita força e não à toa isso vai redundar depois em coisas como aquele grupo ‘terrorismo nunca mais’ ou no livro do Ustra”, afirma, citando organização que enaltece o golpe de 1964 e a obra “Rompendo o Silêncio”, escrita pelo coronel.
Segundo ele, mesmo após a Constituição de 1988, houve prosseguimento de uma narrativa de evitar o revanchismo. “O discurso estava circulando entre os militares de legitimação do que eles fizeram e desqualificação de quem denunciava. É muito grave isso, mas ajuda a gente a entender a atitude do Exército até hoje. Em nenhum momento, eles aceitaram assumir a postura de reconhecer os crimes que foram cometidos em nome do Estado brasileiro, pedir desculpa e falar: ‘A gente mudou, hoje somos uma instituição voltada para democracia'”, afirma. Um dos documentos mais recentes que ilustram a preocupação dos militares sobre o assunto é o relatório número 01/1991, de 15 de fevereiro de 1991, que traz o editorial “Revanchismo ou estratégia”. “Há muito vem ocorrendo, de forma insidiosa e continuada, com a utilização dos meios de comunicação social, nacionais e até mesmo estrangeiros, a exploração malévola e mentirosa de situações e fatos, com o propósito flagrante de tentar denegrir a imagem das Forças Armadas”, afirma o documento.
Diálogo com os militares
Autora do livro “Um Acerto de Contas com o Futuro: A Anistia e Suas Consequências – Um Estudo do Caso Brasileiro”, Mezarobba atuou como consultora sênior da CNV e, dentre outras atividades, conduziu parte da interlocução com o Ministério da Defesa e as Forças Armadas. “Durante quase dois anos dialoguei com representantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha em busca de esclarecimento sobre os mais graves crimes do período: os casos de mortes e desaparecimentos forçados.” Segundo ela, o diálogo envolveu a leitura, por parte dos militares, de milhares de documentos produzidos pelos serviços de segurança e inteligência. “O Exército, por exemplo, constituiu uma equipe de oito militares para analisar 195.600 páginas de documentos, envolvendo 110 desses casos”, informa. Para a cientista política, a agressiva atitude de Bolsonaro não parece refletir a visão majoritária das Forças Armadas. “Saí desse diálogo com a impressão de que o alto escalão das três Forças, constituído por uma geração que não atuou durante a ditadura, tem compromisso com os valores democráticos e não está interessado em recriminações de grupo.” Recentemente exonerada por Jair Bolsonaro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, a procuradora da República Eugênia Gonzaga lamenta o que aconteceu desde a redemocratização com os pedidos das vítimas e familiares. “Nenhum governo após 1988 adotou políticas de justiça de transição –de responsabilização dos atores– nem de total revelação da verdade”, afirma.