O julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre nepotismo parece, à primeira vista, uma discussão técnica sobre moralidade administrativa. Mas, no fundo, toca em uma das mais antigas estruturas de poder do Brasil — e, particularmente, do Maranhão: a interpenetração entre família, política e Estado.

Mesmo abrandando a interpretação da Súmula Vinculante 13, reconhecendo a constitucionalidade da nomeação de parentes para cargos de natureza política, “desde que observados critérios objetivos de qualificação técnica e idoneidade moral“, ainda assim, a repercussão desse julgamento certamente espalhará brasas em solo timbira, que devem queimar corpos e emplumadas cabeças, se bem que consciências passarão ao largo…
No caso maranhense, o tema ganhou rosto e sobrenome. O partido Solidariedade questionou a presença de Daniel Brandão, sobrinho do governador Carlos Brandão, no Tribunal de Contas do Estado (TCE). O conselheiro ocupa o cargo desde 2023, escolhido por unanimidade pela Assembleia Legislativa e nomeado pela então presidente Iracema Vale, em meio a uma breve vacância do governador e do vice. O detalhe biográfico — o parentesco — tornou-se agora o cerne de um debate que ultrapassa o indivíduo e alcança o próprio modelo de poder que persiste no Estado.
Pela tese que o STF está consolidando, o vínculo familiar com governantes só será aceitável em cargos estritamente políticos, como secretarias e ministérios. Funções técnicas, de controle ou vitalícias — a exemplo dos tribunais de contas — passam a ser vedadas a parentes até o terceiro grau. Se o tribunal fixar essa interpretação, o caso Daniel Brandão se tornará um divisor de águas: ou o Maranhão se ajusta à nova moldura institucional, ou desafia abertamente o novo padrão ético definido pela Suprema Corte.
Um espelho do poder local
No Maranhão, onde o poder raramente se dissocia do sobrenome, decisões desse tipo têm peso simbólico. A ascensão de Daniel Brandão ao TCE repetiu um roteiro recorrente: a convergência de alianças políticas, deferência parlamentar e consenso tácito entre grupos de influência. Nenhum desses elementos, isoladamente, constitui ilegalidade. O que está em jogo é algo mais sutil — a legitimidade moral de um sistema que confunde laços familiares com mérito institucional.
Patrimonialismo como herança
Desde o Império, o Maranhão convive com uma elite que administra o Estado como extensão do clã. A lógica patrimonialista, descrita por Max Weber e aprofundada por Raymundo Faoro, encontra no cenário maranhense uma versão persistente: a do Estado de famílias. A cada geração, novos rostos mantêm velhos vínculos — e a administração pública se torna o espaço de continuidade simbólica das casas políticas.
Essa continuidade produz estabilidade, mas também imobilismo e autodefesa. O julgamento do STF ameaça romper esse circuito de lealdades herdadas, deslocando o centro da autoridade do costume para a norma.
Entre tradição e moralidade
A eventual decisão do Supremo não será apenas jurídica. Terá caráter pedagógico. Ela reinterpreta o princípio constitucional da impessoalidade — um ideal sempre tensionado nos rincões onde o poder é, antes de tudo, pessoal.
Para o Maranhão, isso significa mais do que revisar uma nomeação. Significa repensar o pacto simbólico que sustenta a elite política local: a crença de que governar é, de algum modo, uma extensão do sobrenome.
A encruzilhada maranhense
Se confirmada a nova regra, o Estado viverá uma transição delicada. As instituições locais terão de equilibrar a preservação da governabilidade com a necessidade de distanciamento ético. E a sociedade civil — imprensa, universidades, movimentos — será chamada a ocupar um espaço que, por décadas, permaneceu subordinado aos circuitos de família e poder.







