
O Maranhão assistiu, nos últimos dias, a uma explosão de bastidores que dificilmente poderá ser contida apenas com notas oficiais. A divulgação de áudios envolvendo aliados históricos do ex-governador e hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, e do atual governador, Carlos Brandão, expôs não apenas um suposto acordo político rompido — mas também a anatomia de uma crise de confiança entre o poder e a lealdade, com reflexos em toda a sociedade.
Os áudios, trazidos à tona pelo deputado Yglésio Moyses (PRTB), revelam conversas em que vozes do círculo mais próximo de Dino — os deputados federais Rubens Pereira Júnior (PT-MA) e Márcio Jerry (PCdoB-MA), o secretário-executivo do Ministério dos Esportes, Diego Galdino, e o desembargador federal Ney Bello — discutem termos de uma paz política com Brandão. A paz teria preço: o controle de uma prefeitura e a liberação de indicações ao Tribunal de Contas do Estado (TCE), órgão cuja composição é justamente alvo de ações relatadas por Dino no STF.
O episódio não é trivial. Ele escancara o quanto o Maranhão continua a operar sob o mesmo fio tênue que separa a política institucional da política de bastidores. Quando um ministro do Supremo — ainda que negue envolvimento — torna-se personagem de um enredo de “acordos” regionais, o dano simbólico é inevitável. O que está em jogo não é apenas a veracidade das gravações, mas a percepção de que o poder no Estado continua a girar em torno de pactos pessoais, e não de princípios públicos.
Dino, em nota, classificou a hipótese de envolvimento como “obviamente absurda”, reiterando que desde fevereiro, quando tomou posse no STF, “virou a chave” e deixou de tratar de política. Rubens Júnior, por sua vez, admite ter dialogado com o ministro, mas “a pedido de Brandão” — e acusa ter sido gravado ilegalmente, fora de contexto. Já Brandão, em resposta, afirma que “tudo o que veio à tona já era sabido”, negando ser o autor das gravações e atribuindo aos interlocutores a própria armadilha: “Eles se fizeram gravar”.
As gravações, de fato, soam como ecos de um passado recente que insiste em não se despedir. Nelas, aparecem expressões que traduzem a lógica informal da política local: “cumprir o acordo de Colinas”, “zerar tudo”, “fazer de conta que nunca se desentendeu”. A naturalidade com que se fala em “liberar o TCE” ou em “manter o acordo de Colinas” — reduto eleitoral de Brandão e berço do conflito — reforça a ideia de que, no Maranhão, os arranjos políticos ainda obedecem à liturgia do compadrio, onde cada gesto é moeda e cada silêncio, um pacto.
O caso se agrava quando se percebe o cruzamento de esferas: um desembargador federal opinando sobre composição de secretarias e alertando o governador a “baixar a bola”; um secretário de ministério comentando “ofertas” de prefeitos; e deputados tratando cargos públicos como instrumentos de reconciliação. O que transparece é a sobrevivência de uma cultura política que mistura amizade, tutela e poder — e onde as fronteiras entre Estado, governo e partido se desfazem com a mesma facilidade com que se grava uma conversa no viva-voz.
Colinas, a pequena cidade de 40 mil habitantes no coração do Maranhão, simboliza essa disputa maior. O chamado “acordo de Colinas”, selado ainda em 2016 entre os grupos de Dino e Brandão, prometia alternância e convivência política. Mas, como em tantos acordos que nascem da conveniência, acabou ruindo quando o poder mudou de endereço. A cidade tornou-se o espelho do rompimento: um microcosmo onde o prestígio pessoal vale mais do que a palavra pública.
A ascensão de Dino ao Supremo, longe de pacificar o grupo, cristalizou a cisão. O ministro, que um dia foi o símbolo da esperança de renovação política no Maranhão, passou a representar para antigos aliados o poder de veto — não o de mediação. O episódio das ações do TCE, relatadas por ele próprio sem se declarar impedido, intensificou o mal-estar e alimentou a narrativa de interferência, ainda que a postura de Dino esteja amparada pela formalidade judicial.
Do outro lado, Brandão, que herdou o governo, mas não a autoridade simbólica do antecessor, tenta se afirmar rompendo com o passado — e acaba cercado pelos seus fantasmas. Ao mesmo tempo em que se declara aliado de Lula, precisa administrar um Maranhão dividido entre a velha base de Dino e a nova geografia do poder local. Suas notas públicas soam defensivas, mas também revelam um cansaço: o de quem governa sob vigilância permanente, em um estado onde nada parece esquecer-se.
A crise dos áudios, portanto, é mais que um escândalo. É um retrato da transição incompleta de um ciclo político. O “grupo de Dino”, que por quase uma década monopolizou o discurso de mudança, mostra agora suas fraturas internas e a vulnerabilidade moral que o acompanha. Já Brandão, o sucessor que prometeu continuidade com autonomia, descobre que a herança do poder inclui também seus vícios.
No fundo, o episódio expõe um dilema maior do Maranhão — e, por extensão, do Brasil: o da dificuldade de separar o público do pessoal, o interesse do Estado do interesse de grupo. Entre áudios, notas e negações, o que se ouve é o som de uma política que fala baixo, mas age alto. Uma política que ainda acredita que pode “zerar tudo” — como se a memória coletiva pudesse ser regravada, como se o poder fosse apenas uma conversa entre amigos.
No fim das contas, o episódio dos áudios não destrói apenas reputações momentâneas — ele corrói um discurso inteiro. Flávio Dino, que construiu sua trajetória política sob o signo da ética republicana e da ruptura com o patrimonialismo, vê agora seu nome arrastado para o mesmo pântano que jurou drenar. Carlos Brandão, por sua vez, expõe a fragilidade de um governo que se equilibra entre a lealdade e a conveniência. O caso, mais do que um tropeço isolado, revela a falência simbólica de uma geração que prometeu refundar a política maranhense e terminou refém dos mesmos métodos que dizia combater. No Maranhão, a nova política envelheceu cedo — e, no espelho dos áudios, o que se vê é o rosto cansado de um poder que já não sabe mais se justificar.







